sábado, 27 de outubro de 2012

Cinema por todos os lados


"Cinema por todos os lados". Não, não estou falando do complexo e generoso painel cinematográfico que é a Mostra SP. Mas da vontade de expressar a sensação de (finalmente) assistir O SOM AO REDOR, esse filme brasileiro tão comentado, festejado e premiado pelo mundo. Da impactante abertura, com tema musical tenso acompanhando fotos antigas em preto e branco da tradição tão pernambucana de uma sociedade moldada em torno do engenho da cana-de-açúcar, passando para um passeio de câmera acompanhando uma garota de patins num playground de um edifício-prisão, já sentimos uma complexidade rara no cinema nacional pelo uso cirúrgico, planejado, bem pensado, dos recursos audiovisuais, da arquitetura de imagens em largo CinemaScope, da montagem que entende que cinema é ritmo, música. Tem cinema por todos os lados aqui. Principalmente onde ele mais está em falta hoje em dia: no conteúdo, no casamento da forma com o sentido. O SOM AO REDOR assim, é cinema pleno, superlativo, onde o discurso político nunca é planfetário, porque o filme prefere a sutileza, o olhar humano, até mesmo poético, que não precisa gritar o que está errado nesse mundo, porque simplesmente já está tudo lá, registrado diante dos nossos olhos. A precisão técnica é tão certeira, que o filme tem uma direção de fotografia impecável, daquelas que em nenhum momento você pensará "que fotografia belíssima!", porque não é apenas estética. Não por acaso, o primeiro prêmio internacional do filme, em Roterdã, destacava justamente "evocar uma atmosfera de paranoia e perigo através do uso ambicioso de desenho de som e cinematografia".

Embora realizado a partir de um olhar absolutamente pessoal, em grande parte autobiográfico, Kleber Mendonça Filho fala de um mal-estar social urgente da cidade do Recife, mas que pode ser perfeitamente compreendido universalmente (daí a espetacular boa recepção do filme mundo afora), porque é exposto através de sensações, emoções, de puro cinema. O SOM AO REDOR, embora difícil de ser enquadrado em "gêneros", tem terror, suspense, drama e até comédia, passeando confortavelmente na observação de um punhado de personagens que moram numa mesma rua de um bairro que é uma selva urbana grotesca à beira-mar, ironicamente um mar infestado de tubarões. Temos uma dona de casa, seguranças e porteiros, um rapaz corretor de imóveis, seu primo problemático, sua namorada, domésticas e babás, algumas crianças. E um cão que late eternamente. E um senhor, que é o "dono da rua", que caberia bem num filme de gangsters. A relação entre eles é tensa, nunca se sabe muito bem por quais motivos, narrada de forma fragmentada, em três blocos que somam mais de duas horas de filme. Embora alguns deles não tenham muita importância na resolução final do roteiro, são todos claramente de interesse do diretor, nada é mostrado em vão. Bem... O SOM AO REDOR é o tipo do filme que você pode falar empolgadamente por horas e horas, mas que o melhor mesmo é assistir.

Jornalista, cinéfilo e com uma carreira de direção de cinema construída cuidadosamente ao longo de poucos curtas metragens e documentários, Kleber Mendonça Filho cometeu uma daquelas estreias em longa que já é tópico obrigatório na  história do cinema brasileiro contemporâneo. É possível identificar influências de Michael Haneke, Lars von Trier (na abertura), o filme dialoga com o cinema nacional de Carlos Reichenbach (o olhar sensual sobre operárias) e Sergio Bianchi (o olhar político e, se tem algum filme que "pareça" um pouco com o de Kleber, eu citaria o recente Os Inquilinos), mas há também Roman Polanski, David Cronenberg e, na inspirada tapeçaria coral de personagens, o grande Robert Altman (Nashville e Short Cuts, com seus finais perturbadores me vieram à mente). Mas são apenas influências muito bem-vindas da formação cinéfila e, assim como Quentin Tarantino, Kleber Mendonça Filho reprocessa toda essa influência num trabalho completamente original e, dentro do possível, despretensioso, não isento de pequenas imperfeições, mas necessário, muito bem resolvido como um todo. O SOM AO REDOR tem estreia prevista para 04 de janeiro de 2013 em todo o Brasil.

Por Fernando Vasconcelos
Visto na Cinemateca SP em 24/10/12
Cotação: MUITO BOM

2 comentários:

Anônimo disse...

Beleza, mestre. O Kleber é, realmente, um imenso cineasta.
Imenso MESMO.

W. J. Solha

Fernando Vasconcelos disse...

Uau! W. J. Solha aqui? Emocionado :) Vi você também em Era Uma Vez Eu Verônica. Imenso ator.